...hoje, fui ver O Estranho Caso de Angélica de Manoel de Oliveira (ando numa de arejar o cerebelo, para ver se o recomponho... :) e, pela primeira vez na minha vida (queiram desculpar-me- eu sei que, neste país, depois da sacralização colectiva de alguém ou de algum acontecimento, todo aquele que se distanciar do dogma é um herege ignóbil, mas pronto, c´est la vérité...:), gostei de um filme deste consagrado realizador nacional....prova disso é que vi outros e não me lembro de algo que seja do que visionei- retenho na minha memória imagens só dos filmes que adorei (tenho de reconhecer que tb me lembro de algumas de películas que detestei, tipo um dos do Freddy Kruger, depois do qual até vomitei e que me fez, durante décadas, nunca mais conseguir ver filmes de terror (fiquei paralisada de medo... :), assim como um do César Monteiro que durou 3 horas e que me ia pondo num estado apoplético face a tamanha alucinação pervertida... :)...
...bem, e gostei do Estranho Caso de Angélica porquê?...(a) para já, pelo argumento, que consagra um Amor, autenticamente, post-mortem, actualizando a máxima de D. Pedro verbalizada pelo Poeta- "aquela que, depois de morta, foi rainha...", neste caso, do coração de Isaac, o fotógrafo... i.e., talvez estejamos perante uma metáfora elucidativa de um rito de passagem indispensável a que alguém se torne meritória do Olhar de Quem lhe Saiba Perscrutar a Inexorável Beleza Interior, face ao fatal desaparecimento do perecível invólucro, que a tantos mal-entendidos e desperdícios vitais dá, por vezes, origem... ; (b) pelas cenas: (i) a de Angélica no velório, quando observada por Isaac, principalmente quando sorri; (ii) o contraste entre a luminosidade exalada pela morta, num vestido alvo envolta, deitada numa chaise longue plena de nobreza, e a negritude da irmã freira, do irmão aburguesado, que parece saído do Vale Abraão de Agustina, da empregada seca e ríspida e das carpideiras (a Mãe mantém essa Iluminação Interior, ainda que num estado de tristeza profunda...:); (iii) a da primeira aparição de Angélica, do primeiro encontro e voo espiritual de ambos; (iv) a da sala da entrada da quinta, quando a Mãe de Angélica revela a Isaac a selecção das melhores fotos e se vê, em primeiro plano, o peixe no aquário; (v) a de Isaac a correr e aparecer, em primeiro plano, uma estatueta que parece estar a indicar-lhe O Caminho; (vi) a do gato a observar o passarito na gaiola, enquanto reage ao ladrar de um cão fora da pensão; (vii) a do passarito a voar no quarto de Isaac; (viii) a do contraste entre a luminosidade da foto de Angélica deitada sobre a chaise longue, no seu velório, e as que retratam a violência mortífera da face dos camponeses, com enxadas que mais parecem foices da figura da carta XIII do tarot; (ix) a da morte de Isaac e do abraço final a Angélica (eu fiz de propósito e quis que fossem 9, pois o 9 é o símbolo do Nirvana, se não estou enganada...:)); (c) o ritmo proustiano da narrativa que, outrora, me exasperava e, agora, inexplicavelmente, se identifica com algo que se me revela familiar...
...ora, mas certas incongruências cronológicas do enredo estragam a genialidade destas cenas :) as actualizadas entre certos adereços cénicos e a época a que o argumento parece querer reportar-se, o que faz com que o espectador fique sem saber muito bem qual é- por exemplo, o fato do fotógrafo, o tipo de máquina fotográfica e respectiva mala que usa e a decoração da pensão, que nos remetem para os anos 50...nenhum destes elementos poderia, alguma vez, ser cronologicamente coincidente com a actualidade de carros e de vivendas que aparecem em alguns planos...ok, há um plano em que passam duas viaturas mais antigas, mas são para aí dos anos 80 ou 90...
...e, depois, há a representação em si :) muito teatral- não aprecio- uma coisa é cinema outra bem diferente é teatro, são dois géneros distintos e, a meu ver, Ricardo Trêpa não é excelente, de todo, ainda que seja neto do Mestre (não subscrevo o determinismo do axioma "filho", neto de peixe sabe nadar" e a questão dos "actores fetiche" não me convence :)...quanto ao texto, as falas de Leonor Silveira têm 3 erros de Português que uma personagem pertencente a uma elite sociocultural não diria :) "obrigado", um verbo no singular que deveria estar no plural e um vocábulo trocado- já não me lembro qual foram (qual foram? credo! isto é Deus a Dar-me uma Lição :) quais foram :))), mas registei a circunstância...
...pronto, mas gostei e vou tentar voltar a ver alguns outros- pode ser que tenha sido uma questão de total imaturidade da minha parte e da assumida americanização do meu olhar cinematográfico (ainda que deteste americanadas- há uma clara diferença- é que os primeiros filmes que vi eram de Bolly e de Hollywood e as primeiras visões marcam-nos a matriz do olhar... :)))...é que uma coisa é reconhecer a qualidade de uma obra, outra bem diferente é apreciá-la...por exemplo, eu não gosto de fado (a não ser a reposição da Gaivota e do Povo que Lavas no Rio, que julgo sublimes, arrepiantes mesmo, no bom sentido, claro...:), não sei, não me diz quase nada, exceptuando talvez alguns poemas que julgo maravilhosos (diz-me muito mais o flamenco, para além da música africana, claro está...devo ter sido gitana noutra reencarnação... :))), mas reconheço a qualidade de alguns fadistas e de trabalhos que só valorizam a cultura portuguesa dentro e fora do país...
...outro exemplo :) posso não gostar de alguém em termos pessoais, mas reconheço a qualidade do seu trabalho se o detectar...o que me lembra Saramago- tudo o que nele perscrutava detestava, principalmente, no que tocava ao seu ateísmo ofensivo (há ateus bem delicados e quantos muito mais humanos que muitos religiosos!...:) e aos saneamentos no Diário de Notícias, durante o PREC (bragh! :)), pelos quais foram destruídas vidas de pessoas tão nobres e competentes; para além da questão das incongruências entre a ideologia que professava e alguns aspectos da sua vida, mas adorei o Memorial do Convento...o contrário tb se pode verificar :) posso adorar alguém e detestar uma sua obra (extrapolando tal para a vida privada :) não serão os Nossos Melhores Amigos Aqueles que nos Dizem as Verdades Face a Face?... claro que sim!- relação que não sobrevive à Verdade Dita Frontalmente não é algo que seja, rien du tutu, apenas uma palhaçada e a Vida É demasiado Sublime para se viverem palhaçadas...até porque vale muito mais um bom inimigo que um falso amigo, pelo menos, sabemos quem está ali...enfim, manias geminianas, com ascendências leoninas, das quais não abdico, pois têm a ver com Três Princípios que faço questão de cultivar e pôr em prática, mesmo que dê tiritos no pé :) Verdade, Justiça e Isenção! :)...
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