A Excêntrica Prometeica
Ana Catarina, rapariga franzina e sem grandes atributos físicos, óculos com graduação acentuada
e pose tímida e insegura, trabalha num escritório como secretária. É o saco de pancada verbal do
patrão, que a despreza, e o mote de gozo das colegas, bem constituídas e com uma grande escola
de vida, Josefa, Clotilde e Carina, que a encaram como o bobo da festa, a ingénua a quem, por meio de ladainhas fingidas, sugam sempre os últimos tostões do mês. Contudo, o final do mês é sempre reconfortante para Ana Catarina- gozam consigo, mas é sempre ela que as livra dos apuros. Tem-lhes carinho, não consegue suster sentimentos negativos por muito tempo, mas a tristeza invade-a, sempre que as colegas a desprezam, mal já não precisam dela...
e pose tímida e insegura, trabalha num escritório como secretária. É o saco de pancada verbal do
patrão, que a despreza, e o mote de gozo das colegas, bem constituídas e com uma grande escola
de vida, Josefa, Clotilde e Carina, que a encaram como o bobo da festa, a ingénua a quem, por meio de ladainhas fingidas, sugam sempre os últimos tostões do mês. Contudo, o final do mês é sempre reconfortante para Ana Catarina- gozam consigo, mas é sempre ela que as livra dos apuros. Tem-lhes carinho, não consegue suster sentimentos negativos por muito tempo, mas a tristeza invade-a, sempre que as colegas a desprezam, mal já não precisam dela...
Ana Catarina vive uma vida triste, mas equilibrada, bebendo o afecto quotidiano de D. Genoveva, a sua Avó, de Vaitila, a sua empregada e dos animais que recolhe sempre que se depara com um abandonado ou ferido na rua. Ao todo tem 2 cães rafeiros e um São Bernardo, cinco gatos e três pardais, que um dia espera poder libertar. Ana Catarina, a Avó e os animais vivem numa pequena vivenda, já a precisar de uma remodelação, com quintal e jardim, herdada dos Pais, já falecidos. D. Genoveva, agora acamada e esclerosada, acusa sempre Santo António de lhe sujar o quarto com as migalhas das bolachas que devora pelo pecado da gula e pela impaciência perante os milhares de pedidos dos fiéis que só se lembram dele perto de Junho...
A vida de Ana Catarina é muito pacata, mas preenchida - levanta-se cedo, com o latir dos cães, alimenta os animais, trata da Avó, confecciona o almoço da anciã e deixa a ração dos animais pronta para que Vaitila, a empregada cabo-verdiana, possa deles cuidar. Só depois de deixar tudo pronto e de se arranjar, Ana Catarina apanha o autocarro para o escritório. Vaitila é a alegria daquela casa amarela, todos a adoram - passa o dia a cantar mornas e a falar sozinha, adora as conversas sem nexo que tem com D. Genoveva, pois, apesar de nenhuma se entender, uma Amizade pura e um segredo une-as.
Ana Catarina venera os anúncios ao Euromilhões e repete o slogan como se de uma música preferida se tratasse : “Euromilhões, todas as semanas a criar excêntricos”. Todos os dias os ouve na rádio, os visiona em revistas e na TV, ao serão, quando tem um bocadinho para ver as suas telenovelas preferidas com a Avó. Sonha com o prémio e com a possibilidade de se libertar de todas as humilhações por que passa no emprego e de poder dar uma vida melhor à sua família e a Vaitila...
Os seus heróis são os excêntricos do Euromilhões. Joga todas as semanas e o Senhor Joaquim da
papelaria diz-lhe sempre que é esta semana que a menina vai ganhar, tem a certeza, ela merece.
Numa sexta-feira 13, Ana Catarina vê, mais uma vez, o programa, quando espantada, chega à conclusão de que ganha dez milhões de Euros. Fica exultante e abraça a Avó que balbucia qualquer coisa que Ana Catarina não entende. Pela primeira vez, desde há muito tempo, sente-se alguém. De repente, tem uma ideia: escreve uma carta de demissão ofensiva ao patrão, acusando-o de todas as humilhações por que a fez passar...
papelaria diz-lhe sempre que é esta semana que a menina vai ganhar, tem a certeza, ela merece.
Numa sexta-feira 13, Ana Catarina vê, mais uma vez, o programa, quando espantada, chega à conclusão de que ganha dez milhões de Euros. Fica exultante e abraça a Avó que balbucia qualquer coisa que Ana Catarina não entende. Pela primeira vez, desde há muito tempo, sente-se alguém. De repente, tem uma ideia: escreve uma carta de demissão ofensiva ao patrão, acusando-o de todas as humilhações por que a fez passar...
Resolve ir no dia seguinte entregá-la ao escritório e dizer às colegas tudo o que tinha contido durante todos aqueles anos de resignação. Assim o faz. Chegada a casa, conta a D. Genoveva o sucedido, que a condena, afirmando que Santo António não irá gostar, pois ela não pôs no cupão os números que ele escolheu. Ana Catarina ri-se. Pela primeira vez, desde há muitos anos, que não soltava uma gargalhada tão sonora. A Avó repete-lhe que o prémio não é seu - é do santo. Ana Catarina tira o cupão da mala e mostra-lho. Quando o segura na mão, repara que o nº da extracção do seu cupão se refere à semana 18 e não à 19. E lembra-se perfeitamente da voz da locutora a enunciá-lo, pois o seu aniversário é no dia 19 de Setembro...
Ana Catarina cai sem amparo no cadeirão novecentista de D. Genoveva. Ana Catarina caminha apática pelo corredor, até que resolve: é hoje que liberta os pássaros...
Fá-lo no quintal, dizendo-lhes que, pelo menos, eles serão livres. Todavia, quando os bichinhos estão a aprender a apreciar a tão recente liberdade, ouvem-se três tiros- o filho da vizinha, um rapazito gordo e sardento, que costuma gozar com Ana Catarina, mata as criaturas com três tiros certeiros de uma pressão de ar. A gargalhada cruel ecoa no ar ao mesmo tempo que os corpos sem vida caem no chão...
FIM
isabel metello
, 2007
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